Há mais de um século a revolução industrial sacudiu o universo tributário abalando os alicerces que sustentavam as práticas então adotadas para tributar o processo produtivo. O novo modelo de negócio adotado pelas grandes corporações industriais caracterizava-se pela centralização do controle sobre todas as etapas que precediam a geração do produto final, desde a matéria-prima, estendendo sua atuação além dos limites territoriais dos países em que estavam sediadas.
Era preciso, então, lidar com dois problemas que cresciam à medida que esse modelo se expandia. Um, a tributação do lucro, de natureza política, pois boa parte do lucro gerado pelas empresas multinacionais provinha de ganhos obtidos em outros países. Outro, de cunho econômico, pois a verticalização do processo produtivo gerava ineficiência por não privilegiar as compras de insumos de locais onde sua produção era economicamente mais vantajosa.
No caso do lucro, a solução encontrada foi a criação da figura do estabelecimento permanente, isto é, a tributação de parte do lucro decorrente de ganhos obtidos pela atuação em outros países passava a depender da existência de uma unidade fisicamente instalada em outras jurisdições que não a do país onde se instalava a sede da empresa.
Para combater a verticalização do processo produtivo, o velho método de tributar as vendas de mercadorias e serviços foi substituído por um novo modelo em que o imposto passava a ser cobrado em cada etapa da cadeia produtiva, ficando assegurado ao contribuinte o crédito do tributo cobrado na etapa precedente. Esse método universalmente conhecido como um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) eliminava a sobrecarga de impostos que o antigo regime de tributação das vendas gerava, eliminando a ineficiência econômica daí decorrente.
Passados mais de cem anos, uma nova revolução – a revolução digital – provoca abalos mais fortes no universo tributário. Nos novos modelos de negócios, que surgem com as inovações tecnológicas, as possibilidades que as empresas encontram para distribuir suas atividades em várias partes do mundo têm suscitado estudos que buscam modos de combater a erosão das bases sobre as quais incide a tributação do lucro. Novos desafios se apresentam para a revisão das regras adotadas no passado. Não há barreiras físicas à circulação internacional de bens e serviços digitais e a busca de um novo modelo para tributar o lucro das empresas enfrenta dificuldades para obter um acordo sobre o método para apropriar a parcela do lucro gerada em distintos países onde as empresas operam.
A revolução digital avança rapidamente e, à medida que novos modelos de organização dos negócios invadem o espaço econômico, os paradigmas tributários que se consolidaram ao longo do século 20 demandam revisão. Nas transações digitais, os custos de transação perdem importância e as cadeias produtivas são substituídas por redes de geração de valor, que se expandem com o avanço da computação em nuvem. Nessas redes, produtores, fornecedores e consumidores interagem no processo de geração de novos produtos e de criação de mercados. As transações digitais ocorrem quase ao mesmo tempo, demandando uma reavaliação da importância do conceito de cumulatividade na tributação das vendas. De outra parte, o conceito de justiça fiscal deve focalizar o gasto, pois exageros na progressividade podem fazer o Brasil exportar cérebros, pois profissionais competentes podem se mudar para outro país ou permanecer aqui trabalhando para empresas instaladas lá fora.
As mudanças que a revolução digital acarreta no mundo do trabalho também não têm merecido o devido destaque. Novas modalidades de emprego e de remuneração do trabalho surgem com a introdução de inovações tecnológicas que erodem a tradicional base de financiamento do regime previdenciário, que se apoia na folha de salários. À medida que a população envelhece e que cresce o contingente de idosos que depende da previdência pública para atender suas necessidades, esta é uma questão prioritária no debate sobre a reforma tributária.
Neste contexto qualquer proposta que busque promover uma ampla reforma tributária deve ser objeto de um minucioso escrutínio, principalmente se estiver amparada em princípios que estão sendo abalados e previr longos prazos de transição. É claro que uma reforma ampla é necessária, mas é temerário propor que seja objeto de uma emenda constitucional que trate de todos os detalhes de um longo processo de transição.
Uma reforma ampla precisa ser contemplada e discutida, mas o processo de adoção do novo modelo deve ser dividido em etapas sequenciais, a serem percorridas gradualmente, de modo a evitar que decisões adotadas no momento criem barreiras ao avanço no rumo da modernização tributária.
Como os conflitos entre os distintos interesses que giram em torno do tema são muito grandes, o gradualismo na implementação da reforma ajuda a construir o acordo político necessário para avançar na direção desejada, o que ressalta a importância do passo a ser dado no início da caminhada.
No momento em que a reforma da Previdência ocupa a primeira posição na lista das reformas essenciais para destravar a retomada do crescimento da economia, a adoção de uma nova base de financiamento do regime previdenciário deveria ser escolhida para iniciar a caminhada. Com as mudanças que a revolução digital provoca no mundo do trabalho, a tributação da folha de salários não será capaz de sustentar o equilíbrio nas contas previdenciárias.
Com o avanço da revolução digital, a nova base de financiamento da Previdência deveria mirar as transações financeiras. Não se trata de um imposto único nem de revisitar a velha senhora. Como nos ensina a História, toda inovação que chega antes da hora é rejeitada. Basta lembrar a criação do salão dos rejeitados pelos primeiros pintores impressionistas, em Paris, cujas obras não tiveram acesso ao salão principal da exposição, e o ocorrido em São Paulo durante a Semana de Arte Moderna. A hora de adotar a inovação no campo da tributação chegou.
Fonte: O Estado de S.Paulo -28 de junho de 2019